Viagem à volta do meu bairro I

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Urtigas e patos

Acabo de chegar de uma apanha de urtigas nas bermas de um pequeno riacho que passa na rua de Requezende*.

O riacho cheirava mal e nas bermas amontoavam-se restos de lixo. Porém, e apesar destas agressões flagrantes, nascem ao longo da ribeira tufos de urtigas grandes e viçosas de um verde-azulado escuro. A urtiga é uma planta comestível, muito saudável porque rica em ferro. Das suas raízes extrai-se um chá benéfico para o funcionamento da próstata (disse-me um entendido a quem as urtigas não não causam moléstia), portanto é caso para se dizer, da urtiga, que «é prá menina e pró menino», e no entanto, em Portugal, nas regiões urbanas e semi-urbanas do Norte passa por desconhecida para não dizer mal-amada..

A primeira vez que comi sopa de urtigas foi em Liège, onde fiz o último ano da faculdade como estudante Erasmus, oferecida por um padre que, na esteira do Abbé Pierre, acolhia ex-reclusos e outros casos difíceis na sua casa comunitária. A sopa fora confeccionada por eles e era de estalo, não vou revelar aqui a receita, mas por várias e variadas razões nunca mais voltei a provar desse acepipe embora me tenha ficado essa experiência exótica gravada num recanto da minha memória. Só muitos anos mais tarde (quase 30!) me atrevi a reproduzir esse prato e desde então nunca mais parei.

Voltando a Portugal, ao Porto e à minha colheita de urtigas, ocorre-me dizer: «Ainda bem que a poluição não afectou as urtigas!», aliás, não só não afectou as urtigas como não afectou…os patos! Qual não foi o meu espanto ao ouvir, enquanto apanhavas as folhas, um refrão de quá-quás e de pí-pí-piís emanado por um esquadrão de patos e patinhos (para aí uns 20) nadando alegremente naquela água baça e borbulhante (mas não de pureza) que corre pelos descampados cada vez mais raros da invicta, em zonas outrora rurais, para ir desembocar adiante, no rio Douro. Pois aqui, de facto, até há bem pouco tempo, havia uma quinta e as terras, por sinal muito férteis, eram ocupadas por pequenos agricultores que faziam aí as suas culturas de nabos e nabiças, entre outros produtos hortícolas. Infelizmente, a crescente especulação imobiliária, e a ausência de projectos ambientais por parte do poder local aliado a uma quase inexistente pressão por parte da opinião pública, tem levado ao seu progressivo desaparecimento. Isto sim é uma ameaça, quer para as urtigas, quer para os patos e para os terrenos baldios ricos em biodiversidade que ainda perduram como ecos de uma ruralidade antiga, de uma natureza cada vez mais apagada.

Os portugueses, fruto talvez da influência árabe, são hortelões de sucesso (ou pensam que são…); cultivar a terra é um gesto e um saber inatos. A horta é uma forma não só de perpetuar as origens mas também um valor seguro. Recordo-me, a este respeito, de dizer-se na faculdade durante as aulas que as hortas funcionaram várias vezes como «molas amortecedoras» em tempo de carestia, evitando que muitos portugueses passassem fome. Portanto é caso para dizer que é uma cultura enraizada no povo português e que, curiosamente, encontra cada vez mais adeptos nas gerações mais jovens, por conseguinte não me parece que a consigam erradicar tão cedo.

Dito isto, é tempo de ir fazer a sopa. E, já agora, da próxima vez que for atirado às urtigas…aproveite!

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*Escrevi em tempos um texto sobre a rua de Requezende. Movida pela curiosa sonoridade do nome fui à procura da sua origem num livro sobre toponímia portuense e foi aí que descobri que remonta ao antigo proprietário de uma vila neogótica Rek-send, nome portanto de etimologia germânica, segundo o autor, evocando assim uma ocupação muito antiga desta zona da cidade ou, talvez, alguma lenda? pergunto eu.

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