ramaldassaque
«Mais nenhum ruído nem sequer os brados das pessoas,
Que costumam perturbar a cidade muralhada,
Se ouviam ali, onde reina o sossego descuidado,
Envolto no silêncio eterno, longe dos inimigos»
Henry David Thoreau.
Cidade sonhada
Voltei hoje ao riacho para contar os patinhos, mas já só contei…seis!
Provavelmente fui demasiado optimista ao exclamar que a poluição não afecta os patos, e como não? Se não directamente, pelo menos indirectamente pois a insalubridade atrai toda uma fauna cuja proximidade é pouco recomendável. Não sou a única a ir ver os patos, já somos vários a contá-los, a contemplá-los e a torcer por eles. Mas então, se a poluição não é boa para os patos, provavelmente também não o é para as urtigas… e é assim que num espaço de dois dias passo de uma certeza a uma incerteza, de uma ideia ao seu contrário. Aventurei-me pois a ir mais longe à procura de outro arbusto de urtigas até porque o tempo está de feição a andar na rua e a deambulações de toda a espécie.
Dantes costumava sonhar com o Porto. No meu sonho, que era sempre o mesmo, eu chegava à orla da cidade, à fronteira onde terminava a parte urbana e começava o mundo rural representado por campos e caminhos a perder de vista, e constatava com enorme satisfação, com alívio, que para lá do bulício urbano havia as árvores e o espaço amplo dos campos e dos caminhos e, por conseguinte, enquanto assim fosse, estava tudo bem. Acho, tenho a certeza, que este sonho tem a ver com espaços como este. Sempre gostei de deambular pelo Porto e para quem o faz com afinco e regularidade acaba por ir ter, a dada altura, a um terreno baldio, uma antiga quinta, campos e hortas cultivados com toda a espécie de hortaliças. É o Porto das ruelas, das quelhas e das vielas, como esta: «Viela dos abraços de Ramalde» (Escapou por pouco…)
Este local é por assim dizer a quintessência dessa ruralidade urbana, ainda mais sendo atravessado por uma ribeira e outros pequenos canais e regatos que em tempos devem ter servido para a rega dos campos, e como é bastante arborizado, proporciona locais à sombra muito agradáveis em dias de sol. E como os transeuntes vêm para aqui passear, não só os horticultores mas meros ruões como eu, vão imprimindo no meio da vegetação estreitos caminhos que permitem atravessar o terreno de lés a lés, da rua de Requezende até à Estrada da Circunvalação. Além disso, como o terreno é de grandes dimensões, é possível dar um passeio ouvindo apenas o rumorejar da água e os trinados dos passarinhos ou pelo menos era possível até há bem pouco tempo, até esse dia fatídico em que a retroescavadora entrou no nabal. Desde então, toda esta zona, que podia muito bem ser outro parque da cidade, ou um parque de hortas colectivas, está seriamente ameaçada, como tantos outros pequenos paraísos, campos, jardins, subitamente devorados, deglutidos, dizimados tal como os patinhos pelas ratazanas ou pelas gaivotas. E a questão inevitável que se coloca é: Haverá necessidade de tanta edificação, de tantas «crueldades arquitectónicas»? Estou em crer que não, são outros interesses que se alevantam. Não querendo alongar-me sobre este lado irracional do progresso, passo adiante. O certo é que nunca mais sonhei com o Porto, ou melhor, nunca mais até à semana passada pois ao fim de tantos anos voltei a encontrar aquele velho sonho e aquela sensação de que «afinal nada está perdido». Só que desta vez o sonho era um pouco diferente. Eu caminhava pelo meu bairro e a certa altura, de um ponto periférico do passeio, reparo ao fundo nuns montes iluminados por uma tremenda luz matinal. As colinas reverberavam, flamejavam em cores vivas e alegres, cores de fábula: amarelo-limão, açafrão, verde-esmeralda.
Como no koan dos dez monges (ou dos dez tolos), afinal, nenhum monge (tolo) se perdera na travessia do rio, ou como diz um amigo, «a criança nunca se perdeu». Ao fim de tantos anos, e em tempos tão difíceis, o sonho voltou para me dizer que nada se perdeu.
E ali adiante, onde se avistam as gruas, perto da cova de onde se erguerá mais um mamarracho de luxo encontrei um magnífico arbusto de urtigas com folhas grandes e carnudas, estavam mesmo a dizer «comei-me» e eu, à cautela, comi.
Ou então tudo não passou de um sonho primaveril.