Monthly Archives: Abril 2020

Viagem à volta do meu bairro II

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«Mais nenhum ruído nem sequer os brados das pessoas,
Que costumam perturbar a cidade muralhada,
Se ouviam ali, onde reina o sossego descuidado,
Envolto no silêncio eterno, longe dos inimigos»

Henry David Thoreau.

Cidade sonhada

Voltei hoje ao riacho para contar os patinhos, mas já só contei…seis!

Provavelmente fui demasiado optimista ao exclamar que a poluição não afecta os patos, e como não? Se não directamente, pelo menos indirectamente pois a insalubridade atrai toda uma fauna cuja proximidade é pouco recomendável. Não sou a única a ir ver os patos, já somos vários a contá-los, a contemplá-los e a torcer por eles. Mas então, se a poluição não é boa para os patos, provavelmente também não o é para as urtigas… e é assim que num espaço de dois dias passo de uma certeza a uma incerteza, de uma ideia ao seu contrário. Aventurei-me pois a ir mais longe à procura de outro arbusto de urtigas até porque o tempo está de feição a andar na rua e a deambulações de toda a espécie.

Dantes costumava sonhar com o Porto. No meu sonho, que era sempre o mesmo, eu chegava à orla da cidade, à fronteira onde terminava a parte urbana e começava o mundo rural representado por campos e caminhos a perder de vista, e constatava com enorme satisfação, com alívio, que para lá do bulício urbano havia as árvores e o espaço amplo dos campos e dos caminhos e, por conseguinte, enquanto assim fosse, estava tudo bem. Acho, tenho a certeza, que este sonho tem a ver com espaços como este. Sempre gostei de deambular pelo Porto e para quem o faz com afinco e regularidade acaba por ir ter, a dada altura, a um terreno baldio, uma antiga quinta, campos e hortas cultivados com toda a espécie de hortaliças. É o Porto das ruelas, das quelhas e das vielas, como esta: «Viela dos abraços de Ramalde» (Escapou por pouco…)

Este local é por assim dizer a quintessência dessa ruralidade urbana, ainda mais sendo atravessado por uma ribeira e outros pequenos canais e regatos que em tempos devem ter servido para a rega dos campos, e como é bastante arborizado, proporciona locais à sombra muito agradáveis em dias de sol. E como os transeuntes vêm para aqui passear, não só os horticultores mas meros ruões como eu, vão imprimindo no meio da vegetação estreitos caminhos que permitem atravessar o terreno de lés a lés, da rua de Requezende até à Estrada da Circunvalação. Além disso, como o terreno é de grandes dimensões, é possível dar um passeio ouvindo apenas o rumorejar da água e os trinados dos passarinhos ou pelo menos era possível até há bem pouco tempo, até esse dia fatídico em que a retroescavadora entrou no nabal. Desde então, toda esta zona, que podia muito bem ser outro parque da cidade, ou um parque de hortas colectivas, está seriamente ameaçada, como tantos outros pequenos paraísos, campos, jardins, subitamente devorados, deglutidos, dizimados tal como os patinhos pelas ratazanas ou pelas gaivotas. E a questão inevitável que se coloca é: Haverá necessidade de tanta edificação, de tantas «crueldades arquitectónicas»? Estou em crer que não, são outros interesses que se alevantam. Não querendo alongar-me sobre este lado irracional do progresso, passo adiante. O certo é que nunca mais sonhei com o Porto, ou melhor, nunca mais até à semana passada pois ao fim de tantos anos voltei a encontrar aquele velho sonho e aquela sensação de que «afinal nada está perdido». Só que desta vez o sonho era um pouco diferente. Eu caminhava pelo meu bairro e a certa altura, de um ponto periférico do passeio, reparo ao fundo nuns montes iluminados por uma tremenda luz matinal. As colinas reverberavam, flamejavam em cores vivas e alegres, cores de fábula: amarelo-limão, açafrão, verde-esmeralda.

Como no koan dos dez monges (ou dos dez tolos), afinal, nenhum monge (tolo) se perdera na travessia do rio, ou como diz um amigo, «a criança nunca se perdeu». Ao fim de tantos anos, e em tempos tão difíceis, o sonho voltou para me dizer que nada se perdeu.

E ali adiante, onde se avistam as gruas, perto da cova de onde se erguerá mais um mamarracho de luxo encontrei um magnífico arbusto de urtigas com folhas grandes e carnudas, estavam mesmo a dizer «comei-me» e eu, à cautela, comi.

Ou então tudo não passou de um sonho primaveril.

Viagem à volta do meu bairro I

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Urtigas e patos

Acabo de chegar de uma apanha de urtigas nas bermas de um pequeno riacho que passa na rua de Requezende*.

O riacho cheirava mal e nas bermas amontoavam-se restos de lixo. Porém, e apesar destas agressões flagrantes, nascem ao longo da ribeira tufos de urtigas grandes e viçosas de um verde-azulado escuro. A urtiga é uma planta comestível, muito saudável porque rica em ferro. Das suas raízes extrai-se um chá benéfico para o funcionamento da próstata (disse-me um entendido a quem as urtigas não não causam moléstia), portanto é caso para se dizer, da urtiga, que «é prá menina e pró menino», e no entanto, em Portugal, nas regiões urbanas e semi-urbanas do Norte passa por desconhecida para não dizer mal-amada..

A primeira vez que comi sopa de urtigas foi em Liège, onde fiz o último ano da faculdade como estudante Erasmus, oferecida por um padre que, na esteira do Abbé Pierre, acolhia ex-reclusos e outros casos difíceis na sua casa comunitária. A sopa fora confeccionada por eles e era de estalo, não vou revelar aqui a receita, mas por várias e variadas razões nunca mais voltei a provar desse acepipe embora me tenha ficado essa experiência exótica gravada num recanto da minha memória. Só muitos anos mais tarde (quase 30!) me atrevi a reproduzir esse prato e desde então nunca mais parei.

Voltando a Portugal, ao Porto e à minha colheita de urtigas, ocorre-me dizer: «Ainda bem que a poluição não afectou as urtigas!», aliás, não só não afectou as urtigas como não afectou…os patos! Qual não foi o meu espanto ao ouvir, enquanto apanhavas as folhas, um refrão de quá-quás e de pí-pí-piís emanado por um esquadrão de patos e patinhos (para aí uns 20) nadando alegremente naquela água baça e borbulhante (mas não de pureza) que corre pelos descampados cada vez mais raros da invicta, em zonas outrora rurais, para ir desembocar adiante, no rio Douro. Pois aqui, de facto, até há bem pouco tempo, havia uma quinta e as terras, por sinal muito férteis, eram ocupadas por pequenos agricultores que faziam aí as suas culturas de nabos e nabiças, entre outros produtos hortícolas. Infelizmente, a crescente especulação imobiliária, e a ausência de projectos ambientais por parte do poder local aliado a uma quase inexistente pressão por parte da opinião pública, tem levado ao seu progressivo desaparecimento. Isto sim é uma ameaça, quer para as urtigas, quer para os patos e para os terrenos baldios ricos em biodiversidade que ainda perduram como ecos de uma ruralidade antiga, de uma natureza cada vez mais apagada.

Os portugueses, fruto talvez da influência árabe, são hortelões de sucesso (ou pensam que são…); cultivar a terra é um gesto e um saber inatos. A horta é uma forma não só de perpetuar as origens mas também um valor seguro. Recordo-me, a este respeito, de dizer-se na faculdade durante as aulas que as hortas funcionaram várias vezes como «molas amortecedoras» em tempo de carestia, evitando que muitos portugueses passassem fome. Portanto é caso para dizer que é uma cultura enraizada no povo português e que, curiosamente, encontra cada vez mais adeptos nas gerações mais jovens, por conseguinte não me parece que a consigam erradicar tão cedo.

Dito isto, é tempo de ir fazer a sopa. E, já agora, da próxima vez que for atirado às urtigas…aproveite!

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*Escrevi em tempos um texto sobre a rua de Requezende. Movida pela curiosa sonoridade do nome fui à procura da sua origem num livro sobre toponímia portuense e foi aí que descobri que remonta ao antigo proprietário de uma vila neogótica Rek-send, nome portanto de etimologia germânica, segundo o autor, evocando assim uma ocupação muito antiga desta zona da cidade ou, talvez, alguma lenda? pergunto eu.