Monthly Archives: Maio 2020

Viagem à volta do meu bairro VI

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(Fotografia de Martins Sarmento)

No meu bairro cabe o mundo

Ontem o tempo não esteve de feição para deambulações, mas hoje, tendo melhorado um pouco, com o sol já quase a querer raiar por entre as nuvens, resolvi sair para fazer outro percurso para nascente, para as bandas de Monsanto. Lembrei-me que, quando vim para aqui morar, há cerca de 20 anos, havia um trilho desde o fim da rua Martins Sarmento até à rua de Monsanto, havendo também, para esses lados, algumas hortas nuns descampados e terrenos arborizados, quase uma pequena bouça. Toda essa zona verde pertence, acho eu, a uma quinta cuja casa eu me recordo muito bem, pois um dos caminhos para chegar à Circunvalação, era precisamente por essa rua. Recordo-me muito bem de passarmos por essa casa de quinta e pelos terrenos que ladeavam essa rua de paralelos. Hoje, a casa é uma ruína, mas ainda lá está, tal como o casario em volta.

Tinha as minhas dúvidas que ainda conseguisse encontrar esse trilho, até porque, entretanto, foi construído um ramal de acesso à VCI que cortou por completo a ligação entre uma zona e outra. Enfim, quis tirar isso a limpo, pois na minha memória, passava-se por um sítio muito bonito, como que um pequeno vale luminoso e muito prazenteiro. Meti pela rua Martins Sarmento, uma rua sem saída, e ao fundo lá encontrei o trilho. Fiz-me a ele, claro, mas daí a nada estava no tal ramal de acesso à VCI, junto ao bairro do Carvalhido. Atravessei o bairro até à rua de Monsanto e aí, não sei como, fui ter ao outro lado do trilho que me trouxe do club sportivo Nun’Álvares até à rotunda do tal ramal, aliás parte deste trilho faz-se por uma pequena via em alcatrão paralela à VCI. No meu caso, como vinha em sentido contrário ao dos automóveis, quase podia ver a cara dos condutores, o que não deixa de ter a sua graça: à esquerda o mato, à direita a auto-estrada. Escolho o mato. Adiante leio num letreiro o seguinte aviso: «Cuidado com o poço» e sinto um calafrio na espinha.

Ao passar na rua de Monsanto, precisamente junto ao antigo casario pertencente à quinta, agora em ruínas, pode ver-se um mamarracho de dimensões colossais, cuja obra esteve durante muito tempo embargada, magnífico exemplar da construção desregrada e desenquadrada que pulula e polui (n)esta cidade. Não digo que a construção seja má… mas do ponto de vista do enquadramento com o espaço envolvente, é péssima; faltam espaços verdes, zonas de recreio, espaços de sociabilidade, apenas existe um parque de estacionamento. Pensando bem, alguns bairros sociais ultrapassam em muito estas modernas construções no que respeita à escala, aos espaços comuns, ao enquadramento na paisagem, e até, algumas vezes, ao traçado arquitectónico e aos materiais de construção.

Há vinte anos atrás, ainda se podiam ter salvaguardado muitos destes trilhos urbanos. Que bom seria podermos agora deambular pela cidade por caminhos pedestres como este, passando por riachos, lavadoiros, pequenas hortas, vestígios arqueológicos. Infelizmente deu-se total primazia ao automóvel e isso já não é possível. Restam estes retalhos esquecidos, espécie de enclaves à espera que chegue o empreiteiro. Algumas destas casas e terrenos perduram graças à teimosia de alguns velhos ou ao desentendimento entre herdeiros. No que respeita à teimosia dos velhotes, a Covid veio dar uma ajudinha, já no que respeita ao desentendimento entre herdeiros é mais difícil… mas se se entendessem e se fosse possível obter alguns rendimentos sem ser através da construção imobiliária talvez ainda se conseguisse salvar alguma coisa em vez de ficar tudo ao abandono; isso sim seria um verdadeiro tributo ao génio e memória de Martins Sarmento, a quem hoje devemos a soterrada Citânia, em vez de uma singela menção numa placa toponímica de uma rua aparentemente sem saída da cidade do Porto.

Viagem à volta do meu bairro V

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No céu de chumbo, uma brecha

Hoje o dia amanheceu cinzento com nuvens escuras a ameaçar chuva e trovoada. Ainda assim, pus os pés ao caminho, pois como já disse, sem deambulações pela paisagem não há deambulações no papel, e eu quero dar-vos a conhecer o meu bairro.
Desta vez fiz o percurso ao contrário, fui pela rua de Requezende, atravessei a linha do metro e fui ter à zona industrial. A zona industrial do Porto também figura entre os locais da minha infância pois fica muito próxima da rua dos meus pais, mas sendo essencialmente de passagem também é um sítio desconhecido. Fui andando pela rua tentando descortinar alguma harmonia no património edificado, mas, para além da volumetria, não consegui identificar nenhuma traça comum. A maior parte das construções são descaracterizadas e sem qualquer preocupação ou cuidado pelo espaço envolvente, salvo raras excepções. Passei diante da imponente fábrica da RAR, que infelizmente, não se consegue ver na íntegra do passeio, e do lado oposto reparei num armazém com uma montanha no seu interior da cor da areia, provavelmente açúcar em cana, que uma retroescavadora transportava para dentro de um camião. À porta do armazém, num pequeno letreiro, estava escrito «ramas de açúcar». Pensei que não seria muito dispendioso embelezar alguns destes espaços envolventes, cuidar do que já existe e criar mais zonas verdes, o que custaria isso a uma RAR ou um Continente?
Prossegui a viagem indo pelo viaduto que passa por cima da VCI. Pelo caminho passei pelo Mask, um strip club que se auto-intitula o mais famoso da cidade do Porto. Estava fechado, claro, até porque agora a máscara é outra…
Saí do viaduto por umas escadas e atravessei uns bairros sociais até chegar à rua Ferreira de Castro. Cruzei-me com uma jovem e o seu cão, o que me fez olhar para o chão e em cima do passeio reparei que estava um abacate rachado. Instintivamente levantei a cabeça e qual não foi o meu espanto ao topar com um abacateiro carregadinho daqueles frutos. Um abacateiro na rua do autor de «A selva», faz sentido. Abri-o e tirei-lhe o caroço, sem cerimónias. Notei que o caroço deste era diferente dos outros abacates que se compram nos supermercados, maior, mais enrugado e cor de carne. Lembrou-me um pólipo, como aquele que me apareceu no útero e que eu fui queimar ao Hospital de São João depois de muitos sangramentos desnecessários. Enfim, meti-o no bolso e prossegui o meu caminho até chegar à Quinta do Rio. Atrás do velho muro de pedra consegue-se vislumbrar um jardim esplendoroso, as grandes copas folhudas das árvores, tílias, carvalhos, plátanos, ciprestes e glicínias trepando pelo muro e pelos troncos das árvores, rosas santa Terezinha também espreitavam por cima do muro – que vontade de saltar por cima e penetrar naquele jardim, inebriar-me de aromas primaveris! Passei diante da capela, e ao virar a esquina deparei com um pequeno rebanho de cabras. O pastor deixou fugir metade e foi a correr atrás delas mas logo as recuperou e foi levá-las a pastar à beira da ribeira, perto da escola.
Estava de novo no meu Oásis, só que desta vez chegara pela rua direita do Viso. Ao atravessar a ribeira não pude deixar de sentir um sentimento de repulsa, de desprezo por aquelas gruas. Esta gente não tem nenhum pudor! Segundo me constou este espaço estava reservado a ser um parque, um escape dentro desta imensa zona habitacional, já densamente povoada. O que sucedeu então?
Voltei a casa com mais este caroço no bolso. Vou pô-lo a germinar e se dele nascer um abacateiro chamar-se-á Ferreira de Castro, como o escritor, para que não cresça ignorado, e se torne um abacateiro literário com muitas histórias para contar…
Cumpre-me dizer que, no final, começou a chover. Mas durante as duas horas que me levou a fazer este percurso só senti algumas gotas na face, aliás as nuvens chegaram mesmo a abrir e por momentos pude ver uma nesga de céu azul.

Viagem à volta do meu bairro IV

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«I think I’ll go down in a litle while and have a porto

Moricand, in A devil in Paradise de Henry Miller

«Um dia bateu-me à porta um Malaio.»

De Quincey, Confissões de um opiómano inglês (trad. Manuel João Gomes)

Para lá do vazio

Aqui é que a porca torce o rabo, como diz o ditado; Viriata, a minha gata, escondeu-me a caneta e desta vez acho que para sempre. Já andei de quatro, já me deitei no chão, já levantei os tapetes, até tentei falar com ela com bons modos, mas nada, não há maneira. E logo a caneta prateada, de que eu gosto tanto e à qual eu atribuía capacidades extraordinárias. Bem, vamos ver o que se pode arranjar.

Apesar da chuva regressei ao meu oásis, mas não vou falar dos patos até porque não os vi, embora os ouvisse. Fui no encalço de duas aves de rapina que sobrevoavam o terreno e cujo piar atraiu a minha atenção. Dantes havia nestas paragens grandes bandos de pássaros, estorninhos, tentilhões, piscos de peito-ruivo, gaios, andorinha, pardais e outros, mas há muito tempo que deixei de os ver. Talvez cheguem mais lá para o Verão, quando o calor começar a apertar. Avistei algumas andorinhas mas nada que se compare com o que se via dantes. Caminhei até ao grande arbusto de urtigas na direcção do estaleiro gigante, e avancei por entre as silvas e as moitas por um trilho muito estreito que alguns caminheiros intrépidos imprimiram na paisagem. Fui encontrar de novo a ribeira ali adiante num ponto em que forma uma represa, um pequeno açude esculpido numa rocha de granito polido, muito bonita, e por onde a água corre em abundância, se o caudal assim o permitir, formando uma poça. Provavelmente era aqui que as crianças tomavam banho no verão. Do outro lado ficam as hortas e alguém improvisou uma pequena ponte para lá chegar, mas eu preferi seguir pelo trilho e fui ter a uma escola. As duas aves seguiam-me lá do alto, por cima das copas das árvores altas que existem no jardim traseiro de uma casa brasonada, uma quinta, que resistiu à passagem do tempo (muitos destes terrenos provavelmente devem ter pertencido à antiga quinta). Prossegui por uma rua de paralelos, por sinal muito antiga, e fui ter ao outro lado das hortas. Eram mais do que eu imaginava. Na rua cruzei-me com dois homens de aspecto um pouco rude, um dos quais usava uma máscara a tapar-lhe a cara, e o outro, o que não vinha «mascarado», deu-me educadamente os bons dias. Caminhei mais um pouco e cheguei a um bairro de casas familiares, com uma pequena escola primária, dos anos 40 ou 50, que fica quase a chegar à estrada e voltei para casa pela estrada da circunvalação.

Esta estrada trouxe-me à memória as antigas viagens de carro feitas em família até Paços de Ferreira, quando em criança, ia passar os fins-de-semana a casa dos avós, na companhia dos primos, tios e tias. A Circunvalação era então essa fronteira, a partir da qual éramos propulsionados para fora, em direcção ao destino. Até ali estávamos em casa, e qualquer pretexto podia sugar-nos para trás, mas a partir dali estávamos safos e já nada nos podia deter nesse impulso irresistível de ir.

Li algures que segundo Mêncio, «os deveres da filosofia prática consistem apenas em procurar esses sentimentos de criança que perdemos [e] nada mais». Se assim for, então, este não foi um dia inteiramente perdido.

Afinal há mais do que um riacho no nosso oásis. O primeiro, e mais importante, é a ribeira da Granja (ou ribeira de Lordelo, pelos vistos adopta o nome do sítio por onde passa), justifica o título – a meu ver um tanto pomposo – do pequeno solar: «Quinta do rio». O segundo é um afluente deste, e é dele que exala o mau cheiro.

Quanto às duas aves de rapina, não as tornei a ver.

Nota: Meses depois tornaria a ver uma delas atropelada na berma da VCI, não sei se a mesma que  vira outrora debater-se exemplarmente contra um bando de gaivotas, afugentando-as talvez do ninho, acima das copas das árvores da quinta da Prelada. Mas isso foi antes do Parque da Prelada se ter transformado na amostra que agora é.

Viagem à volta do meu bairro III

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Mais patinhos

Isto não é uma desculpa para deixar de fazer muitas coisas devido à sensação
da nossa incapacidade (…) mas apenas um aviso para falhar menos.

Henry David Thoreau

Voltei ao meu oásis para mais uma deambulação, mas não vou dizer quantos patinhos contei, em vez disso vou contar outra história que também envolve patos e que se passou há alguns anos atrás.
Naquela altura, deu-se o caso de eu ter arranjado um emprego (melhor seria dizer de me terem arranjado) num sítio perto do Palácio de Cristal e de passar muito tempo naqueles jardins para onde me escapulia sempre que podia.
Por alturas da primavera deparei certa vez com uma dessas cenas ternurentas habituais neste tipo de jardins, nesta época do ano: um casal de patos passeando a sua numerosa progenitura pelo lago.
− Oh, a alegria de ver um patinho a nadar!
Nos dias seguintes constatei, como outras pessoas puderam constatar, que o número de patinhos ia diminuindo. Certo dia em que me encontrava à beira do lago a contá-los, eram já só meia dúzia, vi com horror uma gaivota apanhar um dos sobreviventes e engoli-lo por inteiro de uma assentada erguendo o bico para que descesse mais depressa pelo papo. Dali a nada, como diz a canção, acabava-se a geração.
Nas semanas seguintes vieram mais proles, mais patinhos intrépidos a aprender a nadar no lago e algumas pessoas, conscientes do perigo, armaram-se como podiam contra as gaivotas e revezavam-se na vigília, às vezes com sucesso. Outras insurgiam-se contra a mãe-pata, por não fazer nada para salvar as crias. O que fazer para evitar o pior?
Semanas depois, numa das minhas deambulações pelos sítios mais recônditos do parque, que vejo eu? Dentro duma jaula (não, não era a do Leão do Palácio), perto do lago, um casal de patos com as suas crias amarelinhas, alimentados e resguardados dos males do mundo. Fiquei muito feliz por ver os patinhos a salvo do bico das gaivotas, e nos dias seguintes já tinha mais um motivo para me escapulir do emprego, coisa que fazia cada vez mais amiúde. Mas dentro da jaula havia uma floreira sem flores, uma floreira vazia, e uma bela manhã indo eu espreitar para dentro da jaula, uma manhã após uma noite muito chuvosa… deparo com os patinhos a boiar sem vida dentro da floreira que se enchera de água. Que cena tão triste! A inevitabilidade do destino ali estampada da forma mais prosaica. Foi pior a floreira do que a gaivota. Não conto esta história para que se compadeçam dos patinhos, nem para relativizar ou minimizar o problema; conto-a porque às vezes andamos com a consciência tão pesada com o que deveríamos ter feito e não fizemos ou com o que fizemos e não deveríamos ter feito, para nada. O final da história não retira mérito ao esforço realizado, claro que podíamos ter virado a floreira ao contrário mas isso simplesmente não aconteceu, e pensar no que não aconteceu não serve de nada. E da próxima vez, ainda que viremos a floreira ao contrário, o que estou certa que faremos, nada impede que outro imponderável apareça para nos estragar os planos.
Agora já posso dizer quantos patinhos contei hoje: 11! Aposto que pensaram como eu que seriam menos do que na última vez, se não, é porque são pessoas extraordinárias e não se deixam atrapalhar por pensamentos deste tipo.