(Fotografia de Martins Sarmento)
No meu bairro cabe o mundo
Ontem o tempo não esteve de feição para deambulações, mas hoje, tendo melhorado um pouco, com o sol já quase a querer raiar por entre as nuvens, resolvi sair para fazer outro percurso para nascente, para as bandas de Monsanto. Lembrei-me que, quando vim para aqui morar, há cerca de 20 anos, havia um trilho desde o fim da rua Martins Sarmento até à rua de Monsanto, havendo também, para esses lados, algumas hortas nuns descampados e terrenos arborizados, quase uma pequena bouça. Toda essa zona verde pertence, acho eu, a uma quinta cuja casa eu me recordo muito bem, pois um dos caminhos para chegar à Circunvalação, era precisamente por essa rua. Recordo-me muito bem de passarmos por essa casa de quinta e pelos terrenos que ladeavam essa rua de paralelos. Hoje, a casa é uma ruína, mas ainda lá está, tal como o casario em volta.
Tinha as minhas dúvidas que ainda conseguisse encontrar esse trilho, até porque, entretanto, foi construído um ramal de acesso à VCI que cortou por completo a ligação entre uma zona e outra. Enfim, quis tirar isso a limpo, pois na minha memória, passava-se por um sítio muito bonito, como que um pequeno vale luminoso e muito prazenteiro. Meti pela rua Martins Sarmento, uma rua sem saída, e ao fundo lá encontrei o trilho. Fiz-me a ele, claro, mas daí a nada estava no tal ramal de acesso à VCI, junto ao bairro do Carvalhido. Atravessei o bairro até à rua de Monsanto e aí, não sei como, fui ter ao outro lado do trilho que me trouxe do club sportivo Nun’Álvares até à rotunda do tal ramal, aliás parte deste trilho faz-se por uma pequena via em alcatrão paralela à VCI. No meu caso, como vinha em sentido contrário ao dos automóveis, quase podia ver a cara dos condutores, o que não deixa de ter a sua graça: à esquerda o mato, à direita a auto-estrada. Escolho o mato. Adiante leio num letreiro o seguinte aviso: «Cuidado com o poço» e sinto um calafrio na espinha.
Ao passar na rua de Monsanto, precisamente junto ao antigo casario pertencente à quinta, agora em ruínas, pode ver-se um mamarracho de dimensões colossais, cuja obra esteve durante muito tempo embargada, magnífico exemplar da construção desregrada e desenquadrada que pulula e polui (n)esta cidade. Não digo que a construção seja má… mas do ponto de vista do enquadramento com o espaço envolvente, é péssima; faltam espaços verdes, zonas de recreio, espaços de sociabilidade, apenas existe um parque de estacionamento. Pensando bem, alguns bairros sociais ultrapassam em muito estas modernas construções no que respeita à escala, aos espaços comuns, ao enquadramento na paisagem, e até, algumas vezes, ao traçado arquitectónico e aos materiais de construção.
Há vinte anos atrás, ainda se podiam ter salvaguardado muitos destes trilhos urbanos. Que bom seria podermos agora deambular pela cidade por caminhos pedestres como este, passando por riachos, lavadoiros, pequenas hortas, vestígios arqueológicos. Infelizmente deu-se total primazia ao automóvel e isso já não é possível. Restam estes retalhos esquecidos, espécie de enclaves à espera que chegue o empreiteiro. Algumas destas casas e terrenos perduram graças à teimosia de alguns velhos ou ao desentendimento entre herdeiros. No que respeita à teimosia dos velhotes, a Covid veio dar uma ajudinha, já no que respeita ao desentendimento entre herdeiros é mais difícil… mas se se entendessem e se fosse possível obter alguns rendimentos sem ser através da construção imobiliária talvez ainda se conseguisse salvar alguma coisa em vez de ficar tudo ao abandono; isso sim seria um verdadeiro tributo ao génio e memória de Martins Sarmento, a quem hoje devemos a soterrada Citânia, em vez de uma singela menção numa placa toponímica de uma rua aparentemente sem saída da cidade do Porto.