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Viagem à volta do meu bairro VII

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Fidalgos
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Os finalmentes

    1. «Por vezes, um mortal sente em si a natureza, e não é o seu pai mas a sua mãe que se agita dentro dele, e torna-se imortal com a sua imortalidade. De vez em quando ela reivindica um laço de parentesco connosco, e algum glóbulo proveniente das suas veias sobe sub-repticiamente nas nossas.»
    Henry David Thoreau
    1. «Uma única circunstância assombrava os dias do padre. Era a presença na Casa Mourisca do hortelão (…) por vezes o capelão ia aconselhar ao fidalgo a demissão daquele homem, que ameaçava infectar de liberalismo a família inteira.»

Júlio Dinis, (Os fidalgos da Casa Mourisca).

Pois sim, mas foi preciso um vírus para que muita desta gente conhecesse este oásis, como diz o Sr. Júlio, que munido da sua pá, se pôs a desentupir o lavadouro que está a ficar cheio de entulho das obras. Foi preciso um vírus para que as comadres trouxessem as crianças a brincar perto do riacho, a saltar por cima dos muretes como as cabrinhas do pastor de Requezende, para que aprendessem a reconhecer uma urtiga e, pela boca das avós, ficassem a saber que antigamente metiam urtigas debaixo dos lençóis aos meninos que faziam xixi na cama (o que talvez explique a razão por que são tão mal-amadas). Foi preciso um vírus para que alguém montasse a tenda na berma do riacho, pois se afinal um empreiteiro pode montar o seu estaleiro e dar cabo de um terço deste oásis, por que razão não há-de um homem sem tecto, montar a sua tenda neste mesmo local, até porque o único parque de campismo que existia na cidade do Porto é agora um picadeiro, vazio de cavaleiros e cavalos, (antes isso que um hotel de charme) mas cuja construção implicou o abate de várias árvores daquele jardim secular e a expulsão do antigo feitor da quinta da Prelada… Amor com amor se paga! Foi preciso um vírus para que a menina Carolina levantasse o rabo da cadeira e fosse apanhar urtigas para as bandas de Ramalde do Meio.
– Olhe que as plantas já levaram muitas mulheres à fogueira… – gracejou o Sr. Júlio. Pode ser, mas como disse uma célebre coreógrafa alemã, «Chi ama non ha paura».
E é com amor que a D. Albertina hoje se queixava do gaio que se pôs a cantar (cantar é uma força de expressão) logo às 7h30 da manhã! Porém, nem assim algumas pessoas se atrevem a sair de suas casas, a deixar os ecrãs de televisão, os telemóveis, os computadores, o gato, o cão, para descobrirem o bairro em que vivem. Pobres de nós, reduzidos a fazer turismo à volta do bairro!
Recordo ter assistido, há alguns anos atrás, à conferência de um insigne intelectual francês, na qual ele explicava que nas sociedades ditas avançadas, existem duas grandes promessas de felicidade: o turismo e os passatempos. Estou em crer que o insigne filósofo esqueceu uma terceira via importante: o contacto com a natureza. Dito isto, é preciso não esquecer que os vírus também são naturais… os eflúvios e os miasmas, “singulares entidades mórbidas” que em épocas não determinadas acometem uma povoação, persistem algum tempo com mais ou menos intensidade e perigo e acabam enfim por se desvanecer ou transmigrar para regiões diferentes [as epidemias] e cujos efeitos, já dizia Hipócrates, só podem derivar da acção da atmosfera. Ouçamos estas vozes antigas, encaremos todos com mais seriedade as consequências que o nosso modo de vida está a ter sobre a atmosfera e a natureza, meditemos no antigo provérbio latino «a natureza cura, o médico trata», mas para que cure tem de ser bem tratada, não será assim?