O rato do campo e o rato da cidade

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Sá de Miranda

«Um rato usado à cidade
A noite o tomou por fora;
(Quem foge à necessidade?)
Lembrou-lhe a velha amizade
D’outro rato que ahi mora.
O qual assi salteado
De um tamanho cidadão,
Por lhe fazer gasalhado
Dá mil voltas o coitado
Que não põe os pés no chão.
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Faz homem a conta errada,
(Que mil vezes acontece)
Cresceu-me muito a jornada,
Diz, entrando na pousada
O cidadão que aparece.
Estoutro pondo-lhe a mezinha,
Põe-lhe nela algum legume;
Mesura quando ia e vinha,
Deu-lhe tudo quanto tinha,
Pede perdão por costume.
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Cumpre muito aquela mesa
Mais da fome que da gula;
Faz claro a fogueira acesa;
Mostra bom rosto à despesa.
Vem o outro e dissimula.
E está dizendo consigo:
Este não foi para mais!
Que vai de Pedro a Rodrigo!
Bem diz o exemplo antigo
Que os dedos não são iguais!
Ora depois de comer,
Jazendo detrás o lar,
Começa o rico a dizer:
Dous dias que hás de viver
Aqui os queres passar?
Na secura de um deserto
Que não sei quem o suporte,
De urzes e tojos coberto,
Sendo tudo tão incerto
E tão certa só a morte?
.
Vive, amigo a teu sabor,
Mais é que cousa perdida
Quem por si escolhe o pior.
Vai te comigo onde eu for,
Lá verás que cousa é vida.
Des que um e outro provares,
(Que eu de outrem não adivinho)
Quando te não contentares,
Aqui tens os teus manjares,
E também tens o caminho.
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Assi disse! Eis o vilão,
Em alvoroço e balança,
Ia e vinha o coração
Ora si, e ora não.
Venceu porém a esperança!
E que deve i ele fazer?
Vive de tanto suor!
Inda não pode viver,
Não pode o ano vencer,
Sempre a saída é melhor.(…)»

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